quinta-feira, abril 10, 2008

Valores

Um dos argumentos invocados para travar o projecto da estância de esqui de S. Glório que referimos há dias foi o de que ele punha em causa um dos últimos habitats do urso pardo na Península Ibérica. Ou seja, foi invocado um valor ambiental real e concreto, em vez de argumentos genéricos, mais ou menos vagos, mais ou menos românticos, mais ou menos relevantes para o que em concreto ali se estava a decidir.

E na Serra da Estrela? Aqui que a estância já existe, os projectos são para a sua ampliação. Tenho dito que não me parecem nada razoáveis, porque como a estância está no alto da montanha, só pode ser ampliada para baixo, para menores altitudes. Para locais onde neva menos, onde está mais quente, onde a neve se aguenta menos tempo. Mas este argumento é apenas económico. Se apenas o dinheiro da Turistrela fosse investido neste empreendimento, ele não nos diria respeito. (Mas é claro que há sempre o apoiozito do estado, da autarquia, da União Europeia...)

Reconhecendo que já não há ursos na serra (imagino que desde perto do final da Idade Média), nem lobos (há algumas dezenas de anos), nem cabra-montês, nem quaisquer outros mamíferos selvagens de grande porte (à excepção do javali), poderíamos pensar que não se aplicam, por cá, grandes preocupações ambientalistas. Ao fim e ao cabo, tudo o que havia para extinguir já se extinguiu, porquê tanta choraminguice?

Porque, pura e simplesmente, não é verdade que a Serra da Estrela esteja já esvaziada de valores ambientais. No "Guia geobotânico da Serra da Estrela"(1), do holandês Jan Jansen, podemos ler,

The flora of Estrela includes about a quarter of the preliminary Portuguese red list of vascular plant species, many of wich are confined to the Estrela within Portugal. In the Park's territory more then 400 bryophyte species could be detected. This is about two-third of the bryophyte flora of Portugal and some 40% of the Iberian. A considerable number occurs on the red list of bryophytes from the Iberian Peninsula.
(p. 36)
Se ainda não chegasse, o apêndice 3 deste mesmo guia enumera 45 espécies de mamíferos, 143 espécies de aves nidificantes, 9 de peixes, 33 de répteis e anfíbios.

Apesar de tudo isto, é verdade que não temos nada tão "espectacular" como o urso pardo. Mas vejamos. Na página 7 da ficha sobre o lobo ibérico do Plano Sectorial da Rede Natura 2000, informa-se que "deverão ser aplicadas todas as medidas que potenciem uma futura ocupação [pelo lobo] desta área [serra da Estrela], dada a proximidade com áreas onde a espécie ocorre." Entre outras medidas, propõe-se

  • Promover a conservação e o fomento das presas selvagens (nomeadamente corço e veado) do lobo através de:
    • manutenção/recuperação do coberto vegetal autóctone
    • assegurar uma correcta exploração cinegética destas espécies
    • acções de re-introdução/repovoamento de corço, quando necessárias
  • Condicionar a implementação de grandes infra-estruturas
  • Condicionar a abertura/utilização de novos acessos em áreas sensíveis, nomeadamente no âmbito de processos de Avaliação de Impacto Ambiental e no âmbito de Planos de Ordenamento do Território. Fiscalizar acessos e circulação de veículos motorizados. Nas áreas mais sensíveis, interditar circulação de viaturas fora dos caminhos estabelecidos.
Ou seja: quase não há mamíferos selvagens de grande porte na serra, mas um instituto do governo sugere a sua reintrodução. Para tal ser viável, há que ter alguns cuidados, ainda maiores do que aqueles a que a conservação das mesmas espécies obrigaria, caso elas fossem pré-existentes no território.

Em resumo, acho que mostrei que a ampliação da estância de esqui (e outras grandes iniciativas, como a abertura de novas estradas, etc) não só pode pôr em causa em causa um real, vasto e valioso património ambiental como parece contrariar flagrantemente as opções e orientações definidas pelo governo para a protecção ambiental no território do PNSE.

(E ainda por cima, como se não bastasse tudo isto, há cada vez menos neve na Serra da Estrela, e cada vez de pior qualidade! Valerá mesmo a pena a ampliação da estância?)

(1) Fernando Catarino, no quinto volume da série "Árvores e florestas de Portugal", publicada pelo jornal Público, diz deste guia o seguinte: "Em minha opinião, trata-se do melhor guia de Natureza alguma vez editado em Portugal. A riqueza e qualidade das ilustrações do guia têm paralelo no texto, claro e de grande rigor científico. O guia retrata correcta e exaustivamente os valores biológicos e as paisagens que o Parque encerra, num exemplar enquadramento climático, edáfico e biogeográfico" (p. 126). No ano passado, tentei comprá-lo na sede do Parque. A edição em língua portuguesa estava esgotada, tive que me contentar com a edição em inglês. Ter-se-á entretanto alterado este estado de coisas?

7 comentários:

Anónimo disse...

Contradições

João Soares disse...

Olá José Amoreira e Tiago Pais
Na minha última postagem coloquei um vídeo Bioterra sobre a Serra da Estrela e ao longo da semana irei falar mais sobre este belo Parque.
Espero que gostem e comentem.
Abraços

Anónimo disse...

A simples existência de uma estância de esqui num local único em Portugal já é completamente incompreensível, quanto mais a sua ampliação.

TPais disse...

Olá João,
obrigado pelo desafio e pela abordagem a este tema no teu blog. Assim que tiver um tempinho passarei lá para ver.
Abraço
Tiago

ljma disse...

João Soares, olá!
Bom trabalho! Obrigado por ajudades a passar a palavra.
E obrigado também pela link para o PAN Project, que não conhecia.
Abraço

TPais disse...

Zé,
tenho dois exemplares do guia Geobotanico em Português!Isto porque o meu primeiro exemplar esteve em parte incerta durante algum tempo e acabei por comprar um segundo mais tarde na Feira do Livro de Lisboa!Se quiseres fazemos a troca!
Abraço

Catarina Meireles disse...

Na realidade a Serra da Estrela está muitíssimo degradada, mas continua a ter um enorme conjunto de valores naturais, único em Portugal. O problema é que a maioria de nós não o conhece, simplesmente porque o seu grande valor não está em animais de grande porte (pelos quais nos sentimos naturalmente atraídos), mas em pequenas coisas, como certas plantas, anfíbios e muitos insectos.

Dizem que “não se ama o que não se conhece” e esse é afinal o grande problema de todos nós e da Serra da Estrela!

Nós não necessitamos que o lobo venha para termos uma serra com valores naturais! Eles estão lá. Nós é que não os vemos ou, infelizmente em alguns casos, fazemos de conta que não existem! Dá mais jeito!

Algarvear a Serra da Estrela? Não, obrigado!