quinta-feira, abril 16, 2009

Do sentir e do pensar

O que ouviu os meus versos disse-me: Que tem isso de novo?
Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, ninguém.
Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferente.
E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas eu não.
Eu amo as flores por serem flores, directamente.
Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento.
Poemas Inconjuntos (Alberto Caeiro)

O ilustre heterónimo que me perdoe, mas eu amo as árvores por serem árvores, com o meu pensamento, e acho que o meu deleite com as árvores é maior por nele estar incluído o pensamento.

Uma paisagem na serra não é só o que os olhos vêm, o que o nariz cheira, o que os ouvidos ouvem e o que a pele sente. Uma paisagem na serra (ou noutro local qualquer) é também as memórias que ela invoca, a interpretação que dela fazemos, as reflexões que ela motiva. E quanto mais soubermos, quanto maior for a nossa bagagem de memórias e de conhecimentos, mais rica é a experiência.

Para uns, um piar gargalhado e estridente na floresta é apenas mais um piar da passarada; para outros, trata-se de um pica-pau-malhado na época do acasalamento. Para uns, uma mancha verde acizentada numa pedra é só mais um líquene como há tantos; para outros é um Rhizocarpum geographicum com 8000 anos de vida (ver Bloco de notas do CISE nº 17 ou uma referência que lhe fiz aqui).

Alberto, desculpa lá, pá. O rio da tua aldeia pode ser mais belo que o Tejo, mas não o é por ser apenas o rio da tua aldeia e por não fazer pensar em nada. É porque os fantasmas que acorda em ti, no teu pensamento, nas tuas memórias, são mais belos que os que te aparecem face ao Tejo. Não há sentir sem pensar.

6 comentários:

carpinteira disse...

Apesar d'isso, prefiro a ingenuidade do Alberto, à depressão das sensações do Campos

Anónimo disse...

Este carpinteira é mesmo um pedante. O que é que tem a ver as preferencias dele com o que está escrito no post.

ljma disse...

É verdade que as preferências poéticas do carpinteira não têm directamente a ver com o que eu queria dizer mas, muito francamente, parece-me que vieram a propósito. Foi um devaneio como outro qualquer, foi um devaneio como o post que o fez surgir.

As conversas normais são feitas de "desconversas" como este, e ainda bem, que é mesmo assim que me agradam!

Mas ele há gostos para tudo, bem entendido.

Pedro Nuno Teixeira Santos disse...

"O ilustre heterónimo que me perdoe, mas eu amo as árvores por serem árvores, com o meu pensamento, e acho que o meu deleite com as árvores é maior por nele estar incluído o pensamento."

José,

O heterónimo decerto que te perdoaria...A tua argumentação é (quase) irrebatível mas, ainda assim, há muita beleza neste poema.

Pelo menos na interpretação que lhe dou que, por certo, nem seria a mesma que o Pessoa teria pensado para o mesmo. Mas aí sou eu que digo, o Fernando que me perdoe mas cada um é livre de dar aos seus poemas a interpretação que entende...

ljma disse...

Claro! A literatura é de quem a lê. O drama ou comédia ou seja o que for desenrola-se na cabeça do leitor, não nas páginas do livro, e não é necessariamente pior (ou melhor) do que o que o autor imaginou. É, com toda a certeza, diferente.
De facto, a literatura (incluindo a poesia, bem entendido) é como as árvores e como os rios: a gente ama-os (pegando na expressão do poema) mais pela relação que estabelecem connosco do que pelo que são em si, intrinsecamente, se é que essa intríseca essência, independente de nós e da nossa "bagagem", tem algum significado.

Quanto ao resto (e respondendo também ao carpinteira), não tive a intenção de fazer crítica de poesia. Apenas aproveitei este poema que recentemente reli por acaso (e no qual encontro também muita beleza, bem entendido) para divagar sobre como usufruimos a natureza.

G* disse...

São as coisas que nos chamam, mesmo se evocamos "geia", o estatuto natural do mundo. A noção de paisagem corresponderá à de um "objecto cultural sedimentado", como disse Anne Cauquelin, com a função de garantir permanentemente o quadro da percepção. Tal acepção não exclui as vossas analogias, apenas exclui as vis invectivas de quem não compreende a razão de ser humano e vem desconversar.

Saudações do Grémio*

Algarvear a Serra da Estrela? Não, obrigado!