Nos anos cinquenta, algum maluco entendeu que era ab-so-lu-ta-men-te necessário, indispensável para a segurança de Portugal e (porque não dizê-lo) para a de todo o mundo livre, a construção de uma base de vigilância da força aérea na Torre. Venham estradas por aí acima, construam-se uns mamarrachos, vá, salvemos o mundo livre e comecemos o sexto sagrado império, D. Sebastião por aí há-de vir, num futuro não muito distante, perche no rabo, puxado pelo teleski ou, mais comodamente, sentado numa telecadeira. Pois bem, a indispensabilidade da estação de vigilância não chegou sequer para vinte anitos, passados os quais os mamarrachos ficaram ao abandono, não se tendo notado grandes perturbações no que então se chamava equilíbrio do terror, ou no papel de Portugal na NATO, ou fosse lá no que fosse. A esta distância, pode dizer-se que a base aérea não serviu rigorosamente para nada, nem sequer para criar uma qualquer vetusta tradição militar.
Outro maluco, lá pelos finais dos loucos anos sessenta, entendeu que, para desenvolver o turismo, era necessário um teleférico, desde os Piornos até à Torre. O Diabo quer, um maluco tem uma ideia, outros (tão malucos como o primeiro) seguem-no, a obra faz-se. Faz-se? Quase. É que, já nos preparativos para a inauguração, se descobriu (os avanços da ciência têm destas coisas) que o número de dias de vento forte, em que o teleférico não poderia funcionar por questões de segurança, era tão grande naquela zona, que a exploração do teleférico não seria rentável. Ah! E agora? Já está tudo construidinho... No problemo, deixa-se esta porra a apodrecer aqui durante 20 anos. Passado esse tempo, já nos anos noventa, uma lança em África: as autoridades responsáveis (são muuuuitas) chegaram a um consenso para levar a cabo o óbvio (que o era já desde que se tinha desistido da exploração turística do teleférico): desmontar e remover aquela porcaria toda. Volto a dizer, isto foi um progresso enorme, respirei uma lufada de ar fresco. Finalmente, parecia que as autoridades tinham percebido o B-A-BA: quando se comete um erro, tenta-se remediá-lo, voltando-se atrás se necessário. E assim foi, a porcaria do teleférico foi removida. Toda? Não toda. O edifício da estação inferior, nos Piornos, um mamarracho enorme, com o tijolo, os pilares e as placas à mostra, ficou. Porquê? Na altura, não percebi. No ano passado, fez-se luz, quando li uma proclamação da Turistrela dizendo que o pretende transformar num Spa. Ah, ainda a propósito dos teleféricos, a Turistrela reinventou o disparate, volta a lançar a maluquice da sua construção, agora em moldes "reformulados", "modernizados" e aproveitando para rebentar com locais ainda relativamente sossegados e preservados, o Covão do Ferro e a margem oriental da Lagoa Comprida.
Nestes últimos anos, começou-se a falar insistentemente da requalificação do espaço da Torre. Deixemo-nos de tretas, aquilo é uma lixeira. Mas, nos planos para a requalificação, alguma coisa se diz sobre o lixo? Não. Vai-se aproveitar a oportunidade para demolir os mamarrachos da força aérea, agora em ruínas? Não. Fala-se é da sua reconstrução, em recuperar as torres dos radares como "observatórios panorâmicos" e os outros como hotéis ou restaurantes! Por hipótese académica, admitamos que conseguem tornar arquitetónica e ambientalmente aceitáveis aqueles monos enormes (calma, bem sei que não estamos todos bêbados, trata-se apenas de um exercício, vá lá). Teremos então (ainda no pressuposto da nossa hipótese académica, entenda-se) uma lixeira com qualidade arquitectónica, em vez de uma lixeira sem qualidade arquitectónica. Requalifica-se deste modo alguma coisa?! Mas esta gente (Turistrela) é tal que até anunciou a intenção de aproveitar um edifício sem interesse nenhum, que serviu como garagem do Sanatório, para restaurante! Já agora, porque não reconstruir e requalificar um daqueles currais do Vale do Zêzere, aproveitando-o como parque de gelo coberto, ou como piscina aquecida? [Atenção, trata-se de ironia, estou só a brincar.]
Jorge Patrão, o presidente da Região de Turismo da Serra da Estrela (RTSE) diz coisas como "Agora Portugal já tem o Algarve no Verão e a Serra da Estrela no Inverno." Pois é, é um facto, um triste facto. Mas ele ufana-se, orgulhoso, dessa tragédia! Dessa dupla tragédia, devo dizer. Mais, Jorge Patrão é dos que defende a construção da Estrada Verde, entre a Guarda e o Maciço Central, justificando-a com a magnificiência das suas paisagens! Ou seja, a paisagem é tão bonita, mas tão bonita, que temos que acabar depressa com ela, toca de a rasgar já com uma estrada. Mas que porra é esta?! Paisagens magnificientes?! Oh, oh, pode lá ser!... Aliás, deve ser esta raiva contra paisagens bonitas que o levam a apoiar os projectos das telecabines partindo do Covão do Ferro e do extremo oriental da Lagoa Comprida. Mais ainda, Jorge Patrão defende (em público!!!) que no território do Parque Natural da Serra da Estrela (PNSE) os projectos de investimento não devem esbarrar em impedimentos ambientais! Nem mesmo que sejam nocivos para o ambiente, pergunto eu?! Já agora, não será também defensável afastar da senda do progresso do turismo na Serra outros impedimentos, relacionados, por exemplo, com a propriedade dos terrenos afectados, com licenças camarárias, com o cumprimento das obrigações com a segurança social por parte das empresas envolvidas, com a observância dos regulamentos técnicos das construções etc, etc, etc? O progresso, o verdadeiro progresso, não pode ser travado! Ai credo, que vem aí a desertificação do interior! Ai credo, temos que respeitar as legítimas expectativas de desenvolvimento das populações das freguesias rurais! Ai credo, cuidado com os (eco)fundamentalismos encobertos!
Artur Costa Pais (administrador e accionista maioritário da Turistrela), diz que o (eventual) casino "será a verdadeira estrela da Serra", e refere-se à treta snow fashion 2006 como "Um cenário único como nunca aconteceu na Serra da Estrela". Francamente, um tipo que diz estas coisas, o que é que ele vê na Serra de belo, que justifique a vinda de turistas? Ou ele acha que os turistas virão à Serra para jogar no casino ou para ver tretas fashion? Será que, para ele, tretas destas (que se fazem na serra tão bem como se podem fazer em qualquer outro lugar) são o cartaz maior da serra? Se não são, qual será? Faço estas perguntas porque, da boca deste senhor, só têm saído enormidades como as que referi ou, pelo menos, só as desse calibre chegam aos jornais.
Todos estes decididos passos em direcção a lado nenhum (ou melhor, em direcção a uma cada vez maior degradação do ambiente e das paisagens serranas) são dados com os inevitáveis apoios do estado. Ele é programas estratégicos, ele é fundos de desenvolvimento regional, ele é PETIR, ele é sei eu lá o quê. De cada vez que, ano sim, ano não, mais um destes programas para o desenvolvimento da Serra da Estrela é anunciado, lá vem a parangona na primeira página dos jornais regionais: "N milhões para a Serra da Estrela - Vamos acordar o gigante adormecido!". Nos anos não, para espicaçar o governo, aparece a outra parangona: "O gigante adormecido está votado ao esquecimento!". Não está não - digo eu. Está a ser objecto de um programa de "desenvolvimento" coerente, que dura há já várias dezenas de anos, e que se desenrola a um ritmo cada vez mais acelerado. E *isso* é que deixa o Cântaro mesmo zangado.
6 comentários:
Tive conhecimento hoje do seu blog e, pelo que li concordo com o essencial dos seus artigos, em defeza de uma Serra muito mais natural e muito menos construida.
Como tambem gosto muito da nossa Beira e nao queria ver nela tantos Algarvismos, trato de dar o meu humilde contributo.
Pode crer que passarei por ca mais vezes.
Um abraco beirao
E eu visitarei também os seus blogs de Algodres, Al. É bom encontrar quem me leia do outro lado da serra (não logo, logo a seguir à Serra da Estrela, nem da do Bussaco, mas logo, logo, a seguir ao Atlântico, hehehe...)
Gostei imenso de ler este artigo.
E que tal publica-lo no Jornal do Fundão? Talvez despertasse mais pessoas para este problema e ainda fossemos a tempo de remediar algo e impedir novos atentados.
Continue que nós gostamos de ler!
Olá, Fixer, ainda bem que gostou do artigo. Obrigado. É difícil publicá-lo num jornal porque é demasiado extenso. 7600 caracteres é mais do que o JF está disposto a atribuir-me, eu sei porque já o tentei com outro artigo. Não vou explicar os detalhes, mas o processo arrastou-se durante dois meses ou mais, antes de receber (tive que a arrancar a ferros, de facto) a resposta negativa. Por causa disto, e apesar de conhecer pessoalmente (sem sermos propriamente amigos [ou inimigos]) o director, fiquei sem vontade de voltar a submeter um artigo a este jornal. Mas a coisa que verdadeiramente me incomodou foi o facto de ver a resposta da Turistrela a uma carta de um leitor reclamando do funcionamento da estância, as duas publicadas na mesma edição! Ou seja, o JF informou previamente a Turistrela do conteúdo da carta e aceitou publicar simultaneamente a reclamação e a sua resposta! Incrível! Isso e a permanente colagem à agenda dos srs. presidentes das câmaras da Covilhã, do Fundão, de Castelo Branco. Assino o JF (é o único jornal que assino, aliás), mas mais por razões sentimentais - sempre o assinei. Mas a verdade é que o tempo em que o JF me parecia um jornal de referência passou. Pode ter a maior tiragem dos jornais regionais mas, pelo conteúdo, faz-me lembrar, cada vez mais, um pasquim de paróquia.
Adorei, adorei, ADOREI! Outro não o escreveria melhor! Os meus parabéns!
Devo dizer que estou com umas saudades embora infelizmente só possa voltar à Serra no Verão. Mas é religioso: todos os aninhos de vida que conto, volto sempre às origens!
A minha família é beirã, das Cortes e do Fundão. Ensinaram-me a amar a Serra. E fico triste cada vez que volto e vejo tanto desperdício e tanta estupidez.
Continue! Dar na cabeça é preciso.
Obrigado pelas suas palavras, uhecca, vá aparecendo. Enquando não chega o Verão, "apite" aqui pelo cântaro! Quanto à estupidez, olhe, não sei... Da maneira como as coisas estão, parece-me que há pessoas que estão a tratar muito bem da sua vidinha. Portanto, se há estupidez, parece-me que é a nossa, ao deixarmos a coisa andar... Um abraço!
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