Um amigo disse-me que um conhecido dele tinha considerado as ideias expressas aqui no Cântaro como demasiado radicais.
Não sei se sou ou não "radical". Nunca me vi como tal, mas aposto que todos os radicais dizem o mesmo. Vou tentar identificar elementos de "radicalidade" no meu discurso e explicar porque é que os adopto.
Mas isto dá pano para mangas, por isso vou tratar este assunto aos poucos, sector a sector. Hoje, começo com as acessibilidades
De que se fala quando se referem as acessibilidades? De uma, duas, ou três telecabines para a Torre; da já inaugurada estrada de S. Bento entre a Portela do Arão e a Lagoa Comprida, que deixa a Torre bem "mais próxima" de Loriga; da asfaltação do caminho Unhais da Serra - Nave de Santo António, que diminui para um terço o tempo da viagem rodoviária entre Unhais e a Torre; da chamada estrada Verde (que exemplo de green-wash tão evidente!) com a qual a Guarda ficará a "um pulinho" da Torre. Ouvem-se ainda referências a outros planos, já com menor apoio institucional, como a estrada Alvoco - Torre e estrada Cortes do Meio - Penhas da Saúde. Eventualmente, poderá haver ainda outros projectos que eu não conheça.
O Cântaro Zangado está contra todos estes projectos. Imagino que se considere esta oposição um elemento de radicalidade. Mas, vejamos. O turismo que queremos é o das voltinhas de carro? Deixamos os turistas a si próprios, descobrindo dentros das suas viaturas todas as maravilhas da Serra, em vez de verdadeiramente ordenarmos as visitas, levando os vistantes a sairem dos seus carros nas cidades, vilas e aldeias em redor da serra, visitando devagar as terras, os vales e as encostas, descobrindo a serra, as suas paisagens, a sua história e os vestígios dela (e tem tanta e tantos!)? Mas a Serra é muito mais atractiva nos vales, nas aldeias, nas encostas, do que na Torre. Com todas estas "acessibilidades," estamos a encorajá-los a deixarem para trás as verdadeiras maravilhas e a conduzi-los para onde não representam mais valia nenhuma a não ser para alguns que se consideram (e que são assim considerados nos termos da aberrante concessão exclusiva) donos do turismo na Serra. Não, o Cântaro Zangado não acha que mais estradas tragam melhor turismo, ou tragam mais desenvolvimento pelo turismo. Antes pelo contrário.
E depois, as estradas são feias. As estradas ficam mal nas fotografias, cortam a continuidade, esmagam a escala dos pequenos vales, os seus taludes rasgados mancham as encostas... As estradas são terríveis para as paisagens. E são terríveis para o ambiente, pelo lixo que alguns automobistas deixam por onde passam (e onde passam os bons automobilistas também podem passar os outros, não é?), pelo perigo de atropelamento que representam para os animais e pela fragmentação em parcelas cada vez mais pequenas dos espaços naturais de que animais, plantas e muitos turistas necessitam para o seu bem estar. As estradas são más para o ambiente, portanto. Logo, são más para o turismo de ambiente, logo são más para o negócio.
Além disso, mais estradas aproximando turistas da Torre significam mais carros na Torre, mais sobrecarga (e maiores encargos) para os serviços de limpeza da neve, maior complexidade nos esforços para ordenar o caos por parte das forças da ordem.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo que se sonham, planeiam e executam todas estas estradas, fazem-se belos discursos defendendo a necessidade de reduzir e ordenar o tráfego na Torre.
Para permitir o condicionamento do acesso rodoviário à Torre, entende-se que é necessário criar alternativas ao intensíssimo (tome este adjectivo com toda a ironia que tiver à mão) tráfego de atravessamento. Sonha-se então com túneis sob a Serra, ou com o início dos trabalhos na IP6 (Covilhã - Coimbra). Não quero criticar à partida estes projectos mas, caramba, o que é que têm que ver com a Torre? Os veículos que congestionam o trânsito na Torre são os dos turistas que querem parar o seu carro na Torre, que querem visitar a Torre! Túneis ou IP6 não alteram em nada esta realidade. Não, se queremos menos trânsito no alto da Serra, temos que o condicionar, com ou sem telecabines, com ou sem túneis, com ou sem IP6.
É também por esta via da necessidade da redução do tráfego na Torre que "entram" as telecabines. O argumento mais usado a favor delas é que são menos más que as estradas. Mas alguém fala em encerrar estradas na Serra quando as telecabines estiverem em funcionamento? Não. Logo, este é um falso argumento. E alguém estimou a redução de tráfego na Torre resultante da entrada em funcionamento das telecabines? Não. Ou seja, as telecabines poderão reduzir o trânsito no alto da Serra, ou não. Vamos construí-las e logo se vê?
Mas para se fazer uma análise mais completa das telecabines não nos podemos ficar pelo argumento "são menos más que as estradas", temos que ver em concreto o que se planeia e quais as consequências. Os discursos dos promotores (Turistrela, Região de Turismo e autarquias) falam umas vezes de uma telecabine partindo das Penhas da Saúde, outras vezes dos Piornos, outras vezes de perto da barragem do Padre Alfredo. Caso se opte por esta última (que é a mais razoável para se evitarem os ventos do alinhamento dos vales glaciários do Zêzere e da Alforfa que inviabilizaram o antigo teleférico), o Covão do Ferro, um dos poucos lugares ainda a salvo da degradação suburbanizante que impera já em tantos locais da Serra, será transformado num parque de estacionamento (é que as pessoas têm que largar os carros para se meterem na telecabine, não é?). O mesmo se passa relativamente ao projecto da telcabine Lagoa Comprida - Torre: falou-se (li sobre isso no Público) que a melhor solução seria a partida no extremo oriental da lagoa, ou seja, no lado oposto à barragem. É um lugar lindíssimo. Os promotores querem transformá-lo noutro parque de estacionamento. Serei radical, mas desenvolver o turismo na Serra da Estrela é isto?!
O problema das acessibilidades é causado pela existência das acessibilidades "fáceis e directas". O Ben Nevis, na Escócia, é a montanha mais alta das ilhas britânicas. Tem 1300 m de altitude, ou qualquer coisa assim. Não tem estradas nem telecabines para o topo. Ninguém protesta por isso. É um grande centro de turismo de montanha. Outro exemplo, noutra escala? Gredos, aqui ao lado. Outro exemplo, já no nosso território? O Gerês.
Do que a Serra precisa é de mais gente a andar a pé e de menos gente a andar de carro. Ou seja, menos estradas para abandonar os turistas a si próprios nas tristes voltinhas automóveis, mais actividades para os entretermos.
Diga-me, isto parece-lhe assim muito radical?
8 comentários:
Não me parece nada radical!Parace-me até bastante claro! Por vezes é necessário abrir a mente para entender as ideias novas.
Temos largos exemplos na história de ideias novas serem consideradas radicais: as mulheres emanciparam-se (e bem), será isto radical?Os CFC's foram proibidos para evitar a destruição da camada de Ozono, alguns chamram a isto de radical! Copernico propôs a teoria heliocentrica, logo radical!
Adjectivos como radical, fundamentalista, e outros que tais são muitas vezes usados por falta de argumentos das pessoas que os proferem, simplesmente preferem não "ver".
Não digo que o nosso amigo CZ seja um visionário da história mas que o que ele diz faz sentido, ai faz, faz!!
Pois, de facto, o que não falta neste país são "radicais" e "fundamentalistas"...
No país onde se fez uma auto-estrada (A1) que literalmente corta uma serra ao meio(Aires-candeeiros); onde se fez uma ponte que induziu mais trânsito e novos subúrbios da Lisboa(Vasco da Gama), onde se constroem estádios de futebol para depois ficarem às moscas...
Devo dizer que quando decidi criar um blogue, houve dois que me serviram de inspiração: o Dias com/sem árvores (pela parte das árvores) e o Cântaro (pela parte da Serra da Estrela)...precisamente por ser um blogue que analisava (e analisa) bem os problemas que afectam a Estrela; que propõe alternativas e não se limita a criticar por criticar e que nunca cai no insulto pessoal...
Se isto é ser-se fundamentalista, o que será pactuar-se com a destruição de dezenas de milhares de hectares de floresta na serra? O que será pactuar-se com a enorme lixeira em que transformaram a Torre? O que será pactuar-se com essa "Quarteira de montanha" em que transformaram as Penhas da Saúde?
Querer um turismo que não seja de passagem, não degrade a paisagem e que dê dinheiro e fixe as populações (os artesãos; os produtores locais de produtos alimentares de qualidade, etc.) e não apenas uma empresa, é ser-se radical? E tanto que havia a dizer sobre o dito contrato que lhes atribuiu a exclusidade!...
Querer um turismo e um desenvolvimento sustentável é ser-se radical? Querer que os nossos filhos possam também desfrutar da Serra é ser-se radical?
Bom, então também eu e a Sombra Verde nos matriculamos nesse clube dos "fundamentalistas"...os fundamentalistas pela Estrela!
"D." Pedro, como me honram as tuas palavras! Não tanto o resto (claro, sabe sempre bem), mas a parte do Cântaro Zangado ter servido de inspiração para o Sombra Verde. Que fosse só por isso, e já tinha valido a pena!
Tiago, agradeço-te também (ia-me esquecendo de o fazer). Abraço!
Completamente de acordo
A mim a solução parece-me óbvia. Taxar as entradas de todos os automóveis (excepto residentes) com uma portagem de uns 3 ou 5 euros a partir de uma certa altitude. E colocar autocarros frequentes.
Reduziria-se o trânsito e o espaço selvagem ocupado pelos automóveis estacionados.
Aliás, já vi essa solução em várias serras no estrangeiro.
José,
Agora sou eu que fiquei um pouco "constrangido" com o elogio!Eheh
No fundo, modéstia à parte, se este (quase) primeiro ano de blogosfera me ensinou algo foi que, ao contrário do que previa, se é certo que um blogue não poderá salvar o mundo, estes "incomodam" muita mais gente do que supunha.
E penso que esse tem que ser o caminho...quando não nos limitamos a criticar inocuamente mas propomos alternativas fundamentadas (e sem entrar no insulto pessoal) os blogues, de que o Cântaro, volto a reafirmá-lo, é um dos exemplos mais felizes que conheço, podem tornar-se "armas" mais poderosas do que seria de supor à partida...
Continuação de bom trabalho e abraço.
mc, essa é uma possibilidade. Mas há outras:
1) proibir o trânsito na estrada da Torre
2) não permitir o acesso de veículos às cotas elevadas quando o número de veículos lá presentes ultrapassar um determinado limite
3) não permitir a permanência de veículos no maciço central, multando os veículos que, entrando, demorarem mais do que o que se considerar aceitável a sair (como se faz na zona da barragem de Vilarinho das Furnas, no Gerês)
4) aplicar a regra anterior, mas apenas quando o número de veículos presentes na zona a proteger tiver ultrapassado um dado limite
5) impôr portagens, eventualmente em acumulação com alguma das medidas anteriores
Não me parece que a melhor resposta sejam as portagens. São uma forma de desencorajar o trânsito, de facto, mas não são a única e, por si só, podem não ter grande efeito (se forem fixados valores pequenos) ou discriminam os mais desfavorecidos (se os valores fixados forem elevados) obrigar as pessoas a pagar costuma gerar forte contestação ("Eles querem lá saber da natureza! É só mais uma maneira de nos levarem uns cobres! Economicismo! São todos uns filhos da p***!").
Cá por mim, era mais simples: condiciona-se o acesso ou a permanência de veículos no alto da Serra. E pronto. E o condicionamento aplica-se a todos, visitantes e residentes, exceptuando-se apenas os proprietários de rebanhos ou de terrenos cultivados no interior da região a proteger, veículos de emergência, etc. Note-se que eu sou um residente, mas não sinto os meus direitos fundamentais nada feridos com esta limitação que proponho. Valorizo muito mais o meu direito a uma Serra da Estrela preservada e a passear (a pé ou de bicicleta) por ela em paz.
PS: parabéns pelo "Menos um carro". Vou ser um visitante assíduo.
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