segunda-feira, julho 03, 2006

Estudo do Impacto Ambiental da barragem da Ribeira das Cortes

O Estudo de Impacto Ambiental relativo ao projecto de construção da barragem da Ribeira das Cortes, um projecto antigo do presidente da Câmara da Covilhã, foi recentemente disponibilizado para consulta pública. O Resumo não Técnico (RTN) pode ser obtido aqui.

Não sei o suficiente para avaliar a necessidade da construção da barragem. É verdade que todos os anos aparece uma ou mais notícias nos jornais regionais sobre a urgência imperiosa de uma nova barragem que complemente a das Penhas, mas a verdade é que muitos destes jornais parecem prestar-se, muitas vezes, ao papel de meros mensageiros de certas vozes... O RTN refere insuficiências actuais do sistema de abastecimento de água no concelho mas, pessoalmente, nunca notei nenhuma carência. Nem no Verão passado, que foi terrível para muitas populações em diversos pontos do país, ouvi falar de problemas de abastecimento especiais no nosso concelho. Mas admito que duvide da necessidade da obra apenas por estar mal informado.
O que realmente me leva a escrever este post é o documento (o RTN) em si. Se este Resumo não Técnico é representativo da profundidade com que se fazem os estudos de impacto ambiental e se as autoridades competentes aceitam estudos assim, começo a compreender melhor algumas autorizações...
O documento é frequentemente vago. Por exemplo, refere espécies de flora com elevado valor de conservação, sem explicitar quais são nem, muito menos, indicar claramente quais serão especificamente os impactos sobre essas espécies. Noutros aspectos é muito discutível. Por exemplo, refere que a qualidade da água da Ribeira das Cortes é elevada mas, naquele sítio, tão perto das Penhas da Saúde, com as descargas dos seus esgotos (ou será que já há uma ETAR funcional nas Penhas?), duvido muito... Mas vejamos mais em pormenor. Vou apresentar as listas de impactos positivos negativos e comento no final de cada uma. (A ordenação é minha, para facilitar as referências nos meus comentários)

Impactos positivos

  1. incremento total dos níveis de fiabilidade no abastecimento público de água, ao concelho da Covilhã em qualidade e sem restrições que se prevê para um horizonte de 25 anos potenciando a melhoria significativa da qualidade de vida da população e a dinamização e diversificação da actividade económica do concelho da Covilhã;
  2. boa capacidade de aproveitamento dos recursos hídricos sendo possível obter um volume regularizado de afluências anuais de 6 hm3;
  3. desactivação de todos poços e captações ao longo do rio Zêzere e seus afluentes que se revelam de difícil e onerosa exploração;
  4. incremento na biodiversidade da região face à constituição de novo habitat aquático, na albufeira (habitat em que deixa de haver correntes), favorável ao desenvolvimento de uma comunidade composta por um conjunto de espécies distinta da anterior e, que simultaneamente, a irá complementar;
  5. diversificação da paisagem e dos usos do solo pela introdução de um espelho de água em zona de grande uniformização de formas e cores;
  6. valorização ecológica e sócio-cultural do concelho, em virtude do aumento da atractividade potencialmente associada a actividades de turismo de natureza (TN);
  7. diversificação da actividade produtiva (turismo e indústria) e incremento da sua funcionalidade;
  8. incremento directo e indirecto da actividade económica no concelho;
  9. criação de uma reserva do sistema de abastecimento para combate a incêndios;
  10. possibilidade de produção de energia hidroeléctrica contribuindo para a redução da queima de combustíveis fósseis e, consequentemente, contribuindo para a melhoria da qualidade do ar.
Sobre os pontos 1, 2, 3, 5 e 9 nada tenho a dizer, são factuais, imagino que as estimativas do volume da albufeira estejam correctas.
Quanto ao ponto 4, que espécies se instalarão no novo habitat? Que espécies serão afastadas pela alteração? O Resumo Técnico nada diz. Devemos pois acreditar, sem nos ser dada informação para tal, que se verificará um incremento na biodiversidade... Mas será este o papel de um estudo deste tipo, ou antes o de fornecer dados concretos para que se possa fazer uma avaliação informada sobre os impactos do projecto?
Nos pontos 6 e 7, refere-se a valorização sócio-cultural do concelho relacionada principalmente com aproveitamentos turísticos do embalse. Não compreendo que aproveitamentos se possam fazer na nova lagoa que não se possam fazer também na Lagoa do Viriato. Ora, esta lagoa encontra-se cercada e não é nada fácil (ou não era, da última vez que tentei, no Verão) aproximarmo-nos da beira de água. Será que a Câmara da Covilhã pretende gerir de forma diferente esta nova albufeira? Ainda por cima, li no blog Cortes do Meio um comentário a este mesmo assunto segundo o qual Paulo Rodrigues (presidente da Junta de Freguesia) pretende que, como contrapartida à construção da barragem, seja rasgada uma nova estrada, que permita o acesso directo desde as Cortes do Meio às Penhas da Saúde. Está-se a ver o tipo de turismo que virá a apoiar-se em desenvolvimentos como estes...
Finalmente, sobre o ponto 10 só me ocorre uma evidência: onde é que, nas vizinhanças do concelho da Covilhã, se queimam combustíveis fósseis para a produção de electricidade? Se este ponto não se refere especificamente à qualidade do ar no concelho, qual a importância desta barragem na produção de energia eléctrica no todo nacional? Qual será o impacto na qualidade do ar ao nível nacional (já que não falamos apenas da Covilhã) resultante da poupança na combustão de hidrocarbonetos fósseis permitida pela construção desta barragem? E não dizem atrás que a produção de energia eléctrica é apenas um objectivo secundário e eventual da barragem?

Impactos negativos

  • em resultado da redução de áreas de habitat, poder-se-á registar a afectação de comunidades faunísticas de interesse para a conservação da natureza;
  • a alteração de habitat aquático, no troço da ribeira das Cortes a montante e a jusante da obra, implicará igualmente a afectação de comunidades faunísticas;
  • aumento dos processos erosivos, em virtude da exposição aos agentes climatéricos do solo nu nas áreas intervencionadas;
  • alteração do uso do solo e da paisagem.
Se isto não parece um simples Copy & Paste de outros estudos, macacos me mordam! Se isto não é o cúmulo da generalidade, não sei o que seja! Vá lá que referem, no segundo ponto, o habitat aquático da ribeira das Cortes, senão esta listagem seria válida para qualquer projecto de obra, qualquer que fosse a sua natureza, qualquer que fosse a sua localização! Não se refere quais são as comunidades faunísticas, não se diz qual a sua importância em termos de conservação, não se diz de que maneira serão afectadas, nada se diz sobre a relação entre a conservação dessas comunidades e o desenvolvimento do turismo de natureza que, assim se afirmava na enumeração dos impactos positivos, sairá beneficiado com esta construção... Pior, diz-se que comunidades faunísticas serão afectadas e apresenta-se isto como um impacto negativo; mas tinha sido implicitamente considerado um impacto positivo (no ponto 4). Em quê é que ficamos?

Poderia criticar outros aspectos deste documento com 27 páginas mas acho que o que aqui mostrei já chega para explicar porque é que o avalio negativamente.
Não sei se a barragem é uma coisa boa ou uma coisa má. Não tenho dúvidas que, para muitos, será terrível, por exemplo para os que gostavam dos mergulhos na ribeira, perto da Bouça ou mais abaixo. Imagino que para muitos outros será uma coisa boa. Será talvez necessária. Mas, se pudermos aferir a qualidade geral do Estudo de Impacto Ambiental a partir da do Resumo não Técnico, receio que aquele, como este, não valha o papel em que foi redigido. Entre generalidades (nada explicitadas nem enquadradas localmente) e contradições, juntando ainda argumentos pouco mais do que infantis (para não os classificar como imposturas, pura e simplesmente), fica no ar a sensação que nos estão a tentar comer por parvos. Mas tudo bem, como dizem os autores, "não foi identificado nenhum impacte que possa inviabilizar a concretização da Barragem da Ribeira das Cortes, do ponto de vista ambiental". A confiar no resumo não técnico, podemos dormir sossegados, portanto. Porquê? Não sei. Depois de ler com atenção o resumo, tenho que dizer que não sei.

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Algarvear a Serra da Estrela? Não, obrigado!