segunda-feira, março 20, 2006

E como se democratiza a fruição?

A mais recente contribuição ao blog PETUR:: Tráfego na Serra da Estrela pôs-me a pensar numa questão que é a da "democratização" da experiência da montanha. É que as "forças vivaças" argumentam frequentemente que não há direito que as belas paisagens estejam reservadas para os montanhistas, que aos mais idosos ou aos pais de crianças pequenas também deve ser dada a possibilidade de usufruir das maravilhas da serra, e que por isso se justificam mais e melhores acessos (leia-se estradas alcatroadas e teleféricos). Este argumento é, quanto a mim, um perfeito disparate! Ainda não tenho isto bem pensado, mas ocorre-me o seguinte:
  • em poucos contextos, como neste, é tão apropriada aquela frase que diz que o caminho é mais importante que o destino. Os melhores acessos reduzem a viagem a uma mera deslocação, logo, destroem o principal;
  • as estradas alcatroadas não destroem somente a viagem, destroem também o destino (ou, pelo menos, a sua ambiência) porque o massificam. Por exemplo, uma visita ao Poço do Inferno, perto de Manteigas, nos fins de semana de Verão, não tem interesse nenhum, porque o sítio está pejado de turistas barulhentos, que por ali param durante cinco minutos (o que investiram na deslocação, de automóvel, também não chega para mais);
  • a nossa capacidade para apreciar um local depende muito do esforço e do tempo que investimos para lá chegar. De alguma maneira, a disponibilidade que temos para um sítio ou uma paisagem e para as sensações que eles fazem despertar em nós depende, de maneira determinante, de uma preparação, um "aquecimento" físico e psicológico, incompatíveis com o espírito de uma voltinha dos tristes de carro ou de teleférico;
  • a satisfação que obtemos de um passeio na Serra não resulta apenas das paisagens que ele permite admirar. Uma caminhada na Serra é também, em grande medida, uma caminhada no interior de nós mesmos. A deslocação de carro fica simplificada, mas impede a igualmente essencial caminhada interior. Sem esta última, o passeio não é mais satisfatório do que ver um documentário sobre montanhas na TV;
  • muitas actividades humanas são consideradas altamente excitantes e compensadoras (não me refiro apenas a compensações materiais), por exemplo, a investigação científica ou a alta competição desportiva. Que sentido faz dizer que não há direito que a satisfação que se obtém da prática dessas actividades seja reservada somente aos que as praticam? Nenhum, claro. E será que aqueles que não têm nem formação nem treino terão acesso a essa satisfação só por lhes ser admitida a entrada nos laboratórios ou a participação nos eventos desportivos internacionais? Não, a verdade é que na investigação científica, na alta competição ou na Serra, quem não se dedica, não petisca! Como disse num dos primeiros artigos do Cântaro, quem da Serra pouco quer, pouco leva.
Em resumo, não há verdadeira fruição da montanha sem nos libertarmos das teias com que o dia-a-dia urbano nos entorpece. Para operar essa libertação, não há nada como algum tempo a sentir vento na cara, coração no peito e chão nos pés.
Portanto, é profundamente errada a ideia de que "democratizando-se" os acessos às maravilhas da Serra, se democratiza, também, a sua fruição.
Encerro este artigo com a conclusão da contribuição a que me referi no início:
Passear pela Serra não é passar pela Serra.

Sem comentários:

Algarvear a Serra da Estrela? Não, obrigado!