sábado, junho 12, 2010

Uma experiência simples

Encha um copo com água (pode ser da torneira) e adicione gelo; meça a temperatura da mistura. Em seguida, coloque uma ou duas colheres de sopa cheias de sal no copo e agite durante alguns minutos; volte a medir a temperatura.

Acabei agora de fazer esta experiência, que documento com a figura em cima. Antes de misturar o sal, a temperatura da mistura água-gelo era -2,2°C (fotografia da esquerda); depois de misturar o sal (passados quatro minutos, como se vê), a temperatura desceu para -11,8°C. Suspeito que se repetisse a experiência com neve (em vez de gelo), o arrefecimento seria mais pronunciado.

Porque é que isto acontece? Porque o sal dissolvido na água faz baixar a temperatura de solidificação da água. É exactamente por isso que é usado (nomeadamente na serra da Estrela) para evitar a acumulação de neve nas estradas. Ao baixar a temperatura de congelação, o gelo derrete e ao fazê-lo absorve do ambiente a energia (calor) de que necessita para a transição de fase, o chamado calor latente de fusão. É assim um processo semelhante (mas envolvendo outra transição de fase) ao do arrefecimento cutâneo por evaporação da transpiração.

E porque falo nisto? Porque, como já aqui referi várias vezes nos últimos meses, alguns responsáveis do ICNB (os suficientes para determinarem as opções dos serviços nesta matéria) consideram que a escalada e o montanhismo no Cântaro Magro devem ser proibidos, e por isso indeferem todos os pedidos para a realização dessas actividades nesse pico. As razões apresentadas prendem-se com a classificação atribuída à zona do Cântaro Magro (e, de facto, a todas as zonas onde tradicionalmente se pratica escalada e montanhismo na serra da Estrela), de acordo com a qual, nos termos do plano de ordenamento da área protegida, apenas as actividades de visitação, pastorícia e investigação científica podem ser autorizadas, desde que compatíveis com a conservação dos valores ambientais presentes. Uma vez que a escalada e o montanhismo podem ser classificados como actividades de visitação, importa saber que valores ambientais vêm a sua conservação posta posta em causa por estas práticas. De acordo com o que me foi dito por alguém que participou em reuniões com o ICNB, no caso do Cântaro Magro, esses valores são geológicos e são postos em causa pela erosão que a escalada e o montanhismo acarretam. (Quão grave será essa erosão? Quem é que a terá avaliado? Que estudos estão disponíveis sobre esse assunto? Mistério...)
Mas acontece que a poucos metros de distância de diversas vias de escalada na zona do Cântaro Magro, encontramos a estrada nacional EN339, onde todos os Invernos são despejadas várias toneladas de sal-gema, que escorrem para as mesmíssimas áreas que o ICNB quer proteger da erosão impedindo a prática da escalada e do montanhismo.

Bem, eu já ouvi dizer que o sal não faz nada bem à fertilidade dos solos, que não é nada bom para as plantas, e até já li (b.n. CISE nº 28 Outono 2009, pág. 14) que a sua utilização é um factor de ameaça para a conservação de alguns habitats de água doce da serra da Estrela. Mas não sei. Sei sim (porque o verifiquei agora mesmo) é que a dissolução de sal em água misturada com gelo faz baixar localmente a temperatura. Porque o sei, pergunto-me: não haverá também perigo de erosão associado a um eventual súbito arrefecimento superficial das rochas situadas nas linhas de escorrência sob a estrada, resultante da dissolução do sal usado pelo Centro de Limpeza de Neve? (Recordo que são gradientes de temperatura os responsáveis pela fractura de vidros normais em fornos de cozinha.) Não parece esta situação ter um impacto potencial, naquele mesmo local, muito mais grave do que o da erosão eventualmente causada pela borracha das sapatilhas de escalada? Não seria melhor estudar esta questão? E, já agora, não seria melhor estudar também o impacto real da escalada e do montanhismo?

A escalada e o montanhismo são proibidos pelo ICNB, sem que se conheçam estudos que o justifiquem. Outras actividades, aparentemente muito mais impactantes (raids tt, voltinhas de carro, piqueniques de beira de estrada, esqui, sku, caça, pesca, encontros de motoqueiros, snow-fashions, etc, etc, etc), algumas das quais com impactos nos mesmos locais que alegadamente se querem proteger com a proibição da escalada e do montanhismo, são permitidas! Pior, todas estas actividades são não só permitidas, elas são mesmo encorajadas, dados todos os investimentos públicos nos centros comerciais na Torre, na beneficiação das estradas existentes, na pavimentação de caminhos, no aumento da capacidade de estacionamento, etc.

Somos mesmo originais. Haverá na Europa outra área protegida de montanha como esta?

8 comentários:

Jorge Branco disse...

Excelente texto!
Mais esclarecedor não podia ser!

Unknown disse...

Que bom seria se os "cientistas " do ICNB aprendessem um pouco de ciência...!

Carlos Baía Santos

j. maria saraiva disse...

Obrigado Zé por mais esta achega e por confrontares, tempo perdido como sabemos, o ICNB.
Queria colocar-te uma questão relacionada com o teste. Que acontece quando o sal é depositado na estrada, com o ambiente a temperaturas mais elevadas e, passada uma hora ou mais, a temperatura ambiente baixa repentinamente?

Manuel Franco disse...

mais um bom e esclarecedor texto para quem anda menos atento... OBRIGADO.

em relação a este tema da proibição da prática de actividades de montanha no planalto superior da Serra da Estrela, convido-vos a todos a aderirem ao grupo Eu Continuo a Escalar no Cântaro Magro no FB (http://www.facebook.com/home.php?#!/group.php?gid=498089595243).

mais uma vez obrigado pelo excelente texto e Continua...

ljma disse...

Eu é que devo agradecer os vossos comentários.

Manuel Franco, obrigado pela informação sobre o grupo facebook. Vou aderir daqui a pouco.

Zé Maria, olá! Eu não acredito que este efeito do arrefecimento por dissolução de salgema (de facto, o arrefecimento é provocado pelo derretimento do gelo, que, por sua vez, é causado pelo sal) se note na temperatura atmosférica, porque a atmosfera é muito grande, e porque circula, com o vento: há sempre novas massas de ar a substituir as que eventualmente arrefeçam. Ponho é a hipótese de a camada superficial das rochas arrefecer, e bastante, quando água com sal dissolvido escorre da estrada para as bermas e das bermas para as linhas de água da Rua dos Mercadores, do Corredor do Inferno e da Ponte, etc.

Mas trata-se apenas de uma hipótese, que sugiro que seja estudada no local. O efeito que demonstrei na minha cozinha pode não ser significativo na zona do Cântaro Magro, não sei. É apenas uma hipótese, mas parece-me muito mais crível do que a de a escalada e o montanhismo terem um impacto significativo sobre os valores ambientais da zona do Cântaro Magro. Muito em especial, que essas actividades tenham um efeito de erosão superior (ou mesmo comparável) aos que resultam de a mesma área ser visitada por milhares de pessoas nalguns fins de semana, prática que não só é permitida como é até encorajada pelo estado.

Bom resto de fim de semana!

joseaserra disse...

Zé, levantei a questão pelo seguinte. Como muito bem sabes, o Centro de Limpeza da Neve deita o sal sobre o gelo na fase em que este se encontra branco (neve gelada), muito visível portanto. Ao derreter o gelo fica líquido e ganha transparência. Quase sempre ao fim da tarde, com as temperaturas a descer, a estrada, em consequência disso, ganha uma película gelada transparente que ilude os automobilistas porque o que estes estão a ver é alcatrão, não imaginando que o mesmo está sob uma película de gelo. É uma autêntica ratoeira. Trouxe o tema para aqui por me parecer interessante o teu teste, para que os automobilistas saibam o perigo que os espreita, já que tem sido a causa de muitos acidentes. Quanto ao papel do ICNB sobre o montanhismo já não perco o meu tempo com disparates e com incompetências de técnicos que não têm qualquer preparação nessa matéria. Talvez fosse bom começarem a escalar para aprender alguma coisa...

trepadeira disse...

Olá.

Não se pode desenvolver e preservar a serra querendo fazer dela aquilo que ela não é.

Também não desenvolveremos nada,continuando a escavacar tudo,fazendo as coisas para o dinheiro e não para as pessoas e para a preservação da natureza.

Cordialmente,
mário

ljma disse...

Zé Maria, pelo que li numa pesquisa rápida na internet, no exterior o sal derrete o gelo (ou evita a sua formação) a temperaturas superiores a -9°C. Abaixo disso, pelos vistos, a água congela na mesma. Ora, tais temperaturas, não sendo propriamente normais na serra, ocorrem mesmo assim com alguma frequência na zona da Torre.

Quanto à escalada e ao montanhismo, de facto não lhes ficava nada mal, aos funcionários do parque (em particular aos dirigentes) alguma experiência. Por falar nisso, há dias folheei por acaso um trabalho académico (uma tese de mestrado, se não me engano) de um funcionário superior do PNSE, onde se relatava justamente um passeio na zona alta da serra, envolvendo acampada nas Charcas (proibido, há já muitos anos) e escalada e rappel no Cântaro Magro (passou a ser considerado proibido com a interpretação dada ao actual plano de ordenamento). Ou seja, suspeito que esta sanha anti-escalada não é consensual no ICNB ou no PNSE. Mas há alguns mangas-de-alpaca que estão a fazer escola e a definir a absurda política oficial de conservação da natureza.

Mário, concordo inteiramente: temos andado a escavacar tudo há dezenas de anos, e que desenvolvimento é que tem resultado daí para a região e as suas populações? Zero. Continuaremos no mesmo até quando?

Algarvear a Serra da Estrela? Não, obrigado!