terça-feira, agosto 18, 2009

Picos da Europa — 1: a relação com o território

Cheguei aos Picos da Europa no Domingo dia 9. Acampei no parque de campismo "Naranjo de Bulnes", na aldeia de Arenas de Cabrales. Este parque de campismo é gerido pelos netos de Alfonso Martinez, um natural da aldeia pioneiro da escalada do Naranjo de Bulnes (a montanha representada no logotipo do parque que ilustra este post e que foi escalada pela primeira vez por uma cordada de dois, um dos quais pastor da região).

No segundo dia da minha estadia, perguntei na recepção se havia maneira de percorrer a Ruta del Cares (um trilho pedestre famoso, entre as localidades de Puente Puncebos e Caín, com uma extensão de 12 km) num só sentido, apanhando algum tipo de transporte para o regresso, a fim de poupar os mais pequenos. Perguntaram-me que idade tinham. "Dez anos o mais novo", respondi. Riram-se os da recepção: "Então deixa-te de tretas! Os miúdos irão a Caín caminhando, regressarão caminhando, e ainda quererão que jogues futebol com eles no final. Há transportes, mas demoram mais tempo ainda do que tu caminhando, porque a estrada asfaltada rodeia toda a cordilheira. Deixa-te disso. Vai e vem a pé!" Assim fiz e pude comprovar que tinham toda a razão.

Alguns dias mais tarde, perguntei-lhes sobre outros trilhos que queria percorrer com a minha família. Concretamente, queria saber quanto tempo se levava para atravessar o Canal del Texu (entre Puente Pucebos e Bulnes) e que desníveis encontraria. Deram-me informações detalhadas e correctas até ao mais pequeno pormenor.

Numa das noites, o parque organizou uma palestra com projecção de diapositivos sobre a história da escalada nos Picos da Europa, dada por um alpinista veterano (de que não fixei o nome) integrante de uma cordada que inaugurou a escalada invernal pela face Oeste do Naranjo (creio que se trata da face mais longa e mais vertical). Foram apresentados abundantes indícios da afeição que o povo dos Picos tem pelos seus montes, e pelas actividades desportivas e de lazer que nelas decorrem. O povo asturiano orgulha-se das suas montanhas, e gosta de ser reconhecido como conhecedor profundo dos seus pormenores. "A nosotros nadie nos enseña como subirlas!"

Num outro dia ainda, numa loja de produtos tradicionais onde parei para comprar os inevitáveis "recuerdos", um casal galego meteu conversa com a comerciante. Tendo eles dito que tinham percorrido a Ruta del Cares naquele dia, comentava ela, rindo-se, que era preciso ser doente para vir em férias, em Agosto, levar uma "paliza" daquelas! "La ruta del Cares hay que hacerla em Maio o Septiembre. En Agosto, hace mucho calor!"

Porque falo disto? Quantos comerciantes em Seia sabem quanto tempo é necessário para subir a Garganta de Loriga a pé? Quantos cidadãos de Manteigas conhecem, mesmo que vagamente, as vias de escalada no Cântaro Magro e nas suas redondezas (não pretendo que as tenham escalado ou que as conheçam em detalhe, mas apenas que saibam que existem, mais ou menos onde, em que época foram abertas, etc.)? Quantos habitantes da Covilhã sabem que há na área da Pedra do Urso uma magnífica zona de escalada de blocos ou quais os desníveis na caminhada Piornos - Varanda dos Pastores? Ou mesmo quantos conseguirão dissertar sobre a altura do ano que consideram mais agradável para um passeio entre a Covilhã e a Bouça? Como se compreende que a maioria das vias de escalada do Cantaro Magro tenham sido abertas (imaginadas e escaladas pela primeira vez) por cordadas constituídas por escaladores de Lisboa ou do Porto?

As respostas a estas perguntas mostram que, apesar da pastorícia, não temos na nossa região uma relação profunda com a nossa montanha, ao contrário do que acontece nas Astúrias. O cidadão comum nas nossas localidades (aldeias, vilas e cidades) não conhece a serra, não a aprecia por aí além, não sabe os modos pelas quais ela pode ser usufruída e considera até um pouco estranhos os que dela usufruem. Não admira, pois, que quando se discute o desenvolvimento do turismo, as ideias que apareçam sejam as da abertura de mais estradas de asfalto, os projectos de construções em sítios bonitos exactamente porque ainda não as têm e pouco mais. Nos Picos da Europa, têm outras ideias, e creio que em parte isso acontece porque eles conhecem e amam as suas montanhas mais e melhor do que nós conhecemos e amamos as nossas.

8 comentários:

João Pereira disse...

Olá,

Não podia concordar mais. Também estive no início de Julho nos Picos de Europa, em Covadonga, com os meus pais, e além de visitar os lagos, também fiz a Ruta del Cares, mas num só sentido. Posso dizer que adorei!
E é mesmo verdade que na Serra da Estrela não existe uma relação da serra com as pessoas que, infelizmente, é a causa primordial de muitos dos problemas da serra. É claro que não temos a paisagem dos Picos de Europa, mas temos uma que não lhe fica nada atrás, se fosse bem aproveitada e se existisse a tal relação. Por isso é que digo que é preciso educar as pessoas que passam pela serra e as novas gerações dos seus habitantes para a compreenderem e entenderem que dela podem tirar um grande desenvolvimento(não o das estradas alcatroadas, teleféricos, esgotos a céu aberto, mas sim o sustentável). Só assim teremos possibilidades de mudar as mentalidades da população da serra.
Acho muito lamentável que as grandes caminhadas, percursos pedestres e vias de escalada que se podem fazer na serra sejam claramente ignorados pela maior parte da população, e isso reflecte-se naquelas publicações (como por exemplo os mapas do Ar Livre que o Expresso recentemente vendeu) que em termos de percursos pedestres e caminhadas, ignoram por completo as potencialidades da Serra da Estrela. Os Picos de Europa podem não ser a mesma coisa que a Serra da Estrela, mas mesmo assim temos MUITO que aprender com os asturianos.

Cumprimentos do Ninho de Observações (www.ninhodeobservacoes.blogspot.com), onde na próxima semana vou colocar o relato e as fotos dessa viagem que fiz aos Picos de Europa.

Anónimo disse...

Viva,
Fazendo um pouco de advogado do diabo, lanço a dúvida: Existe algum mapa / guia com os percursos da Serra? Os mesmos encontram-se assinalados como nos Picos da Europa? Ou tudo não passará de um conhecimento reservado a alguns curiosos, que nem às populações é divulgado? Se existem, podiam referenciar algum site / livro/ entidade em que os poderei consultar.

Até Breve. JC

João Pereira disse...

Olá de novo,

Eu conheço um livro bastante completo de percursos marcados (grandes rotas e respectivas variantes) na Serra da Estrela, que pelo que sei não é nada difícil de adquirir, eu arranjei o meu na delegação do Parque Natural na Guarda, é o 'À Descoberta da Estrela - Grandes rotas pedestres' de Angelina Barbosa e António Correia, tenho a 2ª edição de 1998.
Em termos de sites conheço o http://www.cm-seia.pt/percursos/ que fala de percursos que foram marcados pela Câmara de Seia na Mata da Sra. do Desterro. Também o concelho de Gouveia tem a Rota dos Galhardos, marcada e com um folheto, não sei se terá outros percursos. O Concelho da Guarda tem um percurso que desce da cidade ao Vale do Mondego, à praia fluvial de Aldeia Viçosa.

Cumprimentos do Ninho de Observações (www.ninhodeobservacoes.blogspot.com)

ljma disse...

Boa noite a ambos, obrigado pelos vossos comentários.

Não tenho a menor dúvida que a pouca divulgação dos trilhos existentes e a sua deficiente sinalização se devem em parte às fragilidades e à insipiência (com algumas excepções como a do Clube de Montanhismo da Guarda, que, de qualquer modo, tem apenas cerca de trinta anos de existência) do movimento montanhista na nossa região.

Mas parece-me que essas fragilidades e essa insipiência são também sintomas (e de primeira grandeza) da a meu ver fraca relação que, colectivamente, temos com a montanha.

Saudações!
José Amoreira

PS: O João Pereira indicou algumas fontes, acrescento o guia (já algo desactualizado, mas enfim) "Serra da Estrela — Vias de escalada", editado pela Associação Desportos de Aventura Desnível, e o fantástico blog Rocha Podre e Pedra Dura, dos escaladores Daniela Teixeira e Paulo Roxo, onde são frequentemente descritas novas vias de escalada em rocha, gelo e terreno misto na nossa serra (não sei de onde eles são mas quase que aposto que não são daqui).

Ieti disse...

Boas!

O Parque Natural da Serra da Estrela possui uma rede de percursos pedestres sinalizados, com cerca de 350 quilómetros de extensão, constituída por três grandes rotas (T1, T2, T3) e seis variantes (T11, T12, T13, T14, T31, T32) e que se encontram publicados na Carta Turística do Parque Natural, à escala 1:50000. Pelo que me foi dito essa carta encontra-se esgotada e não voltou a ser publicada, mas os trilhos podem ser descarregados (para exportar para GPS ou simplesmente visualizar no Google Earth) no site da comunidade Wikiloc em http://es.wikiloc.com/wikiloc/user.do?name=rr.ieti. Os percursos foram integralmente vectorizados por mim e disponibilizados online num pequeno contributo para quem gosta e quer caminhar pela nossa Serra.
Os muitos trilhos da comunidade Wikiloc podem ainda ser visualizados directamente no Google Earth, bastando para isso activar o layer da Wikiloc (indo a Camadas/Galeria/Wikiloc), existindo já bastantes trilhos disponibilizados na área da Serra da Estrela.

Cumprimentos montanheiros,
Rui Ribeiro

Tiaguss disse...

O relacionamento das "gentes" da serra com a serra resume-se a uma simples questão de mentalidade.

Perguntem por exemplo na Covilhã a qq garoto recém encartado qt tempo ja demorou a subir a serra. Ou de qualquer lado, quem com a neve não se atreveu a subir a serra de carro para fazer umas pioscas?

Andar a pé? Cansar-se? Para muitos isso é de tolinhos.

Para muitos a serra vive-se a motor, seja com 2, 4 ou mais rodas.


Abraços

PS: Escolhes-te para as ferias um dos parques de campismo mais espectaculares que conheço. Se todos tivessem um bocadinho desse ....

Anónimo disse...

"Quantos comerciantes em Seia sabem quanto tempo é necessário para subir a Garganta de Loriga a pé?" - Em Agosto passado, na Ribeira Chã, S. Miguel, constatei que os locais desconheciam a existência de um trilho de 9km, assinalado, que partia da igreja local, subia até á Serra de Água de Pau e regressava...

Anónimo disse...

Desculpa, esqueci indentificar-me - Octávio Lima (Ondas3)

Algarvear a Serra da Estrela? Não, obrigado!